sexta-feira, abril 05, 2024

"O horror à comunicação", João Cepeda, PÚBLICO, 5 de abril de 2024

 

"O horror à comunicação", João Cepeda, PÚBLICO, 5 de abril de 2024

O surpreendente protagonismo do logótipo na tomada de posse do Governo é um caso exemplar de como a desinformação conquistou a vida política. E demonstra bem a forma bipolar como os políticos continuam a ver a comunicação – seja como instrumento de propaganda, seja como frivolidade de algibeira.

O horror à comunicação
Começo por esclarecer que sou parte interessada nesta história. Fui diretor de Comunicação do último Governo, desde Junho de 2022, e entre outras coisas fui eu que defendi a necessidade de substituir o logótipo, que fiz o caderno de encargos para a sua substituição e que sugeri o nome dos designers a quem foi dirigido convite para o concurso público do qual resultou a escolha de Eduardo Aires.

Essa situação influencia a minha análise, naturalmente, mas também me permite explicar como é que esta história nasceu e com que mentiras se coseu. Começo por aí.

Primeira mentira, foram mudados os símbolos nacionais. É absurdo. Os símbolos nacionais, entre os quais a bandeira, estão consagrados na Constituição da República e nenhum governo os pode mudar. O símbolo do governo, por outro lado, representa o poder executivo e nada mais do que isso. É um símbolo operacional que identifica a equipa que gere a coisa pública, em determinado momento. Quem não perceber a diferença destas duas realidades não percebe a democracia.

Segunda mentira: o desenho foi justificado publicamente com a necessidade de termos um símbolo “inclusivo, plural e laico”, à boa maneira woke. Outra vez falso. A justificação para a nova imagem está disponível no site oficial do Governo (identidade.portugal.gov.pt), é de facto pública e jamais incluiu esta expressão. O logótipo foi mudado para melhor se adaptar ao ambiente digital, tal como aconteceu com milhões de marcas em todo o mundo, e assim ser lido em formatos mais pequenos, dinâmicos, etc. Já as palavras citadas foram tiradas de um documento interno (manual para entidades tuteladas), e intencionalmente descontextualizadas, porque até aí se diz que a única razão da mudança é a funcionalidade.

Terceira mentira: tirar as quinas, os castelos e as chagas pretende desvalorizar a bandeira e até a nossa História. É justamente o contrário – Portugal é dos poucos países que permitem o abandalhamento total dos seus símbolos nacionais. Desde rótulos de cerveja a emblemas de discotecas, passando por cuecas de merchandising turístico (como o líder do Chega acha graça promover), os símbolos nacionais são usados e manipulados de forma deplorável, em todo o tipo de produtos e sem qualquer controlo. A um governo cabe dar o exemplo e limitar essa utilização ao mínimo possível.

Por mais bizarro que tudo isto pareça, foram estes três argumentos que o novo Governo usou para justificar a sua decisão inaugural. Podiam ter citado razões estéticas, porque seria sempre subjetivo, ou até pôr em causa a sua competência técnica, e estaríamos cá para rebater (como temos feito com vários “marketeiros” estacionados nos anos 90). Mas preferiram o roteiro da campanha de desinformação. Do horror à comunicação.

Acresce que essa campanha não caiu do céu. Foi o candidato da extrema-direita quem, no dia 1 de Dezembro, pegou nesta discussão do logótipo, que animava as redes sociais há vários meses (a marca já é pública desde o final de Maio), e lhe deu estatuto de tema de campanha. Nada de surpreendente, dir-se-ia, até que no dia seguinte Luís Montenegro decidiu assumir que os argumentos do Chega estariam todos certos e prometeu a extrema unção do design. Fim da história.

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Durante os 21 meses que exerci funções no Governo vi muitas situações parecidas e percebi o tamanho monstruoso deste perigo. Do nome de um pacote legislativo às nuances de uma decisão sobre pensões, é possível ver o sentido de qualquer notícia mudar radicalmente no espaço de uma hora, apenas porque se juntou um comentário do Twitter, um gráfico manipulado ou uma piada de um youtuber. Na narrativa dos grupos de conversação, em particular, qualquer uma destas coisas se cola ao facto original como verdade confirmada.

A propaganda e o spin político, com que continuamos a acenar como grandes ameaças comunicacionais, são hoje conceitos caducos, do tempo em que a comunicação ainda era fechada, lenta e mediada.

Hoje a comunicação é direta. E como qualquer conversa direta, informal, entre duas pessoas, o ritmo é obrigatoriamente rápido, as palavras são simples e as ideias concisas. Aceitar isto não é opcional, é urgente.

Na política, em particular, essa comunicação também passou a depender de narrativas – e não de soundbites, como nas últimas décadas –, construídas tanto por quem produz as notícias como pelos novos gatekeepers, cuja influência depende única e exclusivamente do seu alcance digital e não do seu conhecimento.

A profissionalização da comunicação governamental, que levámos a cabo durante um período curto e especialmente conturbado da vida política, deu algumas respostas a esta realidade.

Mudámos o perfil aos suportes de comunicação, para que falassem para as pessoas e não para especialistas. Trabalhámos todo o tipo de conteúdos, para que fossem sempre úteis e próximos dos cidadãos. E finalmente, sim, mudámos a imagem de todos os interfaces possíveis de comunicação – porque a imagem é uma componente essencial desse esforço de chegar mais rápido e com mais clareza a mais pessoas.

Não tenho dúvidas de que o futuro da democracia depende grandemente da capacidade que os governos moderados tiverem de apostar neste trabalho, até que consigam comunicar pelo menos tão bem como os partidos extremistas, mas, ao contrário destes, com factos e sem mensagens adulteradas. Para chegar aí, todas as boas soluções devem ser usadas, nenhuma deve ser cancelada.

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