«A atual política para a Educação faz parte da matriz ideológica deste governo, que nada tem a ver com a crise, e que podemos ilustrar com quatro "E": Escolha, Excelência, Empregabilidade e Empreendedorismo.
Comecemos pelo primeiro. É a famosa ideia da 'liberdade de escolha', que no fundo é um eufemismo para falar, não da liberdade, que é o combate da minha vida, mas da privatização da escola. (...) O que está em causa é um ataque à escola pública tal como foi construída depois do 25 de Abril. Depois segundo "E", de Excelência, que subjacente a ideia de um ensino seletivo. (...) Infelizmente, o discurso da Excelência é, quase sempre, um discurso contra a inclusão.(...)
[O "E" de Empregabilidade está associado a] Uma visão estreita do ensino, presente em políticas que, no Secundário, e agora também no Básico, apostam no "célebre" ensino vocacional/profissional, e, na Universidade, na criação de ciclos curtos no Ensino Politénico, de vagas só para os cursos que têm saídas profissionais, etc. No fundo está em causa um afunilamento do olhar sobre a Educação, que é obviamente um processo muito mais complexo do que a preparação para um emprego. E não deixa de ser curioso que quanto mais se fala de empregabilidade, menos emprego existe. O Empreendedorismo - quarto "E" - traduz por sua vez uma redução da Ciência: só interessa se for útil, aplicável. Como se saber Matemática ou Física, e por maioria de razão História ou Filosofia, fosse completamente inútil e desnecessário. O Empreendedorismo despreza a ciência como cultura , para valorizar apenas a sua imediata "utilidade".
(...) As palavras não têm culpa. E em abstrato, ninguém tem nada contra contra a Escolha, a Excelência, a Empregabilidade e o Empreendedorismo. Mas a forma como estes conceitos têm sido traduzidos em políticas corresponde a um enorme retrocesso. O primeiro em relação à escola pública; o segundo ao princípio da inclusão; o terceiro a uma formação mais geral de base científica e humanista; e o quarto à Ciência como cultura. Este retrocesso vai deixar marcas para os próximos anos.
(...)
A crise não é apenas uma realidade objetiva, é também construída ideologicamente. Não tenho dúvidas que a crise foi aproveitada para criar um Estado de Exceção. Deixámos de viver num Estado de Direito e passámos a viver num Estado de Exceção. (...)
(...)
Peguemos nos três "D" de Abril: Democracia, Desenvolvimento e Descolonização. Primeiro, é preciso reinventar a democracia. (...) Há que construir uma democracia mais participativa, de maior proximidade. (...)
A ideia que podemos continuar com este modelo de Desenvolvimento, com estes níveis de de exploração dos recursos e de consumo de energia, é absurda. Precisamos de um desenvolvimento em paz com a terra, tema que a crise empurrou para segundo plano. Se continuarmos a viver como vivemos, o planeta não sobreviverá ao século XXI.
(...)
[Falta-nos] Confiança e uma visão de futuro. E aqui entra o teceiro "D", de Descolonização, que parece não fazer sentido hoje em dia, mas faz. Tem a ver com a nossa integração na União Europeia (UE) [que também precisa de ser repensada]. (...) Veja-se a questão dos fundos comunitários. É verdade que foram mal gastos. E de quem é a "culpa"? É da UE que nos deu dinheiro para muitas infraestruturas, mas pouco nos deu para a Escola e para a Ciência, por exemplo. Mas também é nossa porque permitimos que assim fosse. (...)
[Uma estratégia de futuro deverá passar] Por um país com cultura escolar e científica. (...)
Portugal precisa [para sair da crise] de uma outra visão sobre a democracia, o desenvolvimento e a integração na Europa e no mundo globalizado, e de unir dois pilares fundamentais: o conhecimento e o território, a ciência e a sociedade, as universidades e as empresas. (...)
[Uma visão optimista e entusiástica em relação ao futuro do país ...]
Mia Couto disse, uma vez, que era optimista porque em Moçambique eram pobres demais para se darem ao luxo do pessimismo. Sinto o mesmo face a Portugal. Além disso, alguém que está ligado à Educação tem de ser optimista. Um professor pessimista é uma contradição: se eu não acredito que todos os meus alunos podem ir mais longe, não tenho o direito de ser professor. O mesmo se aplica à política. Quem está na vida pública tem a obrigação de ser optimista, de construir o futuro, de dizer às pessoas que há futuro para além da crise. Porque sem confiança não vamos a lado nenhum. (...)»
In Jornal de Letras, 30/4/2014
A entrevista completa: http://www.ulisboa.pt/wp-content/uploads/Clipping/30abr_reitor_emerito.pdf
[Última atualização: 5/04/2014, 23h08]
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