Considero ser extraordinário como certas pessoas defendem posições de inclusão social, de "aceitaçao face às diferenças" (sejam elas quais forem) e depois se manifestam contra, numa posição que considero inconsequente, no que diz respeito ao Acordo Ortográfico (AO). Foi por isso que resolvi atualizar, sem mudanças de fundo, o que escrevi em abril de 2012, quase há dois anos, fundamentando a minha posição relativamente à concordância com o AO. Mantenho, hoje, tudo o que disse então, apesar de ser "politicamente incorreto".
«Identidade Cultural e Acordo Ortoigráfico» (13/4/2012; actualização a 7/2/2014)
«Muito obrigada por esta carta que me enviaram sobre o Acordo Ortográfico. Permitiu-me voltar a refletir, a fundamentar e a manifestar a minha posição sobre esta polémica.
Sou a favor do Acordo Ortográfico celebrado entre os países lusófonos, que tem uma orientação eminentemente fonética. Fui sempre muito penalizada na escola primária por causa da ortografia, até à 4ª classe, depois disso deixei de dar erros, como que por "magia". Claro que ão foi por "magia", foi porque a minha professora da 4.ª classe (como então se dizia) se fartou de trabalhar connosco a ortografia e porque eu amadureci, porque cresci. Na nossa escola primária - o atual 1.º Ciclo do Ensino Básico - e agora falo como professora deste nível de ensino, sobrevaloriza-se a ortografia, transformando-se esta num fator de seleção e de descriminação para a progressão na escolaridade. Há outros aspetos muito mais importantes a considerar na aprendizagem da escrita, como sejam a "textualidade" - a fluência da escrita - as ideias que se querem transmitir, ou seja, a construção da argumentação (o encadeamento das ideias). Lembro aqui como o trabalho de alfabetização de Paulo Freire, no nordeste do Brasil, foi associado à emancipação das populações, à sua capacidade de lutar por melhores condições de vida, à sua capacidade de se organizarem. A escrita tem um grande peso na nossa cultura e pode ser, sem dúvida alguma, um fator de emancipação, tal como pode ser também um fator de exclusão social, nomeadamente quando se sobrevaloriza a ortografia. A escrita (bem como a ortografia) trabalha-se ... é como tudo: é necessário escrever e reescrever e voltar a escrever e a reescrever. Também a ortografia (seja ela qual for) se trabalha - mas há aspetos muito mais importantes a considerar, em meu entender, sobre este assunto e ainda mais no momento presente.
A minha identidade cultural, enquanto portuguesa, não fica em nada ameaçada pela mudança ortográfica. Não creio que o mesmo nos aconteça enquanto povo. Pobres os que sentem afetada a sua identidade cultural, o seu sentimento de pertença, por uma alteração na ortografia: as regras da grafia, da escrita.
Pessoalmente, enquanto portuguesa, gosto também de pertencer a uma comunidade mais alargada, a dos povos falantes de língua portuguesa - aí sim: reforço a minha identidade histórica e cultural, numa imensa diversidade de culturas locais, entre o hemisfério norte e o hemisfério sul, espalhada pelos cinco cantos do mundo. Gosto desta identidade enriquecida e múltipla, aberta e sempre disposta a conhecer o "outro", o diferente. Conhecimento esse que é facilitado por falarmos e escrevermos uma mesma língua - mas com tantos significados tão diversos e diferentes. Tudo isto no meio das imensas contradições da história (muitas delas por resolver) entre colonizados e colonizadores, entre explorados e explorados, entre ricos e pobres.
A carta que me enviaram desconhece que o Acordo Ortográfico (AO) é um acordo internacional, com uma história, que foi ratificado pela Assembleia da Republica em 2008 - ou seja, tem força de lei (veja-se a polémica a este propósito entre Vital Moreira e Vasco Graça Moura*). A todos os cidadãos se reconhece o direito de desobediência civil que é o que esta cidadã faz nesta carta, assumindo as respetivas consequências), mas vivemos, ou não, num estado de direito? A posição de uma cidadã (como a da carta) é igual à de um presidente de uma instituição pública, como o Centro Cultural de Belém, que segundo a comunicação social, retirou de todos os computadores o corretor ortográfico e decretou que lá se continuaria a utilizar a antiga grafia?
A maior parte dos especialistas que agora se pronunciam contra o AO estiveram "distraídos" durante os longos anos - 20 anos, segundo o Henrique Monteiro - em que o mesmo esteve em discussão pública, à boa maneira portuguesa, deixaram passar o tempo e calaram-se.
Interessante é reparar na origem social de quem é contra o AO. A ortografia (note-se que a antiga ortografia tem uma fundamentação etimológica, que acaba por se tornar muito mais elitista), tal como a matemática, têm sido na escola, pela forma como são encaradas, fatores de discriminação e de exclusão social, aquilo a que os educadores críticos e os investigadores deste domínio denominam por "gate-keepers". Tanto quanto percebo pelo que está em causa no AO, tudo o que venha contribuir para "desfazer" esses "gate-keepers" (retirar-lhes o poder - porque é disso que se trata: de lhes retirar o poder de descriminar, de excluir socialmente), para simplificar a ortografia, para a tornar mais próxima do que se fala (perspetiva fonética), sou a favor. Por que haveria eu de querer que outros passassem pelas "tormentas" que eu passei para aprender a antiga grafia, quando há tantas outras coisas (ideias a ações) mais importantes a aprender, a discutir, a debater, a fazer, a realizar? [Tal como acontece nas praxes, temos que fazer com que os outros que vêm depois de nós, os mais novos, passem pelos mesmo rituais de acesso ao código escrito, para que este se torne valioso e estes de apropriem dele da forma mais interessante e condigna?!?]
A posição que assumo parte da minha própria experiência, que acima referi, enquanto aluna, mas sobretudo enquanto professora e investigadora: a escola é (seja qual for o grau de ensino, do primário ao superior) um espaço cultural privilegiado de construção do conhecimento e de aprendermos a viver uns com os outros, com as nossas diferentes histórias, com as nossas semelhanças, mas também com as nossas dissemelhanças. A grafia da palavra escrita, não pode, de modo algum, ser fator de exclusão ou descrimanção social e cultural: "Valores mais altos se levantam!!"
P.S.1 - E não me refiro a fatores economicistas e de produção editorial (7/2/2014).
Dois link interessantes sobre o AO e que me ajudaram a aprofundar a minha argumentação.
*) Os links para esta polémica encontram-se no artigo da Wikipedia que refiro - um artigo muito bem feito e completo.
P.S.2 (13/4/2012) - Uma amiga fez-me chegar este artigo do Henrique Monteiro, Diretor do Expresso, sobre esta questão, que também acho valer a pena ler: http://expresso.sapo.pt/o-acordo-20-anos-depois=f706306#ixzz1rv1Ev5kB
Actualizado às 15h38, 7/2/2014.
Referências:
- Ricardo, M.M.(2009)Breve História do Acordo Ortográfico. Revista Lusófona de Educação, 13, pp. 173 - 180. Recolhido em http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/rle/n13/13a11.pdf, consultado a 12 de Abril de 2012
- Wikipedia (2012). Acordo Ortográfico de 1990. Recolhido em http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_Ortogr%C3%A1fico_de_1990, consultado a 12 de Abril de 2012
1 comentário:
Com todo o respeito, Margarida, os argumentos que apresentas são muito frágeis e fáceis de rebater. Não o vou fazer aqui, mas não rejeito um debate amigável.
Faço apenas notar o facto de alguém dar erros tem muito menos a ver com a ortografia do que com a pessoa, como tu própria pudeste verificar posteriormente; o argumento da inclusão parece-me pouco consistente, pois pode ser perfeitamente usado pela posição contrária (aceitar diferentes grafias - variantes - como, aliás está consignado no próprio AO90, parece-me sempre mais inclusivo que obrigar a seguir apenas uma; no meu entender, a identidade cultural não é posta em causa nem pelo acordo nem pelo desacordo e,assim sendo, não é para este debate.
O que me parece um pouco bizarro é a invocação da "origem social de quem é contra o AO". Não sei há algum estudo sobre isso, mas no leque de representação dos portugueses na AR não há nada que sustente isso. Votaram todos a favor (o que só por si já é de desconfiar. O BE, p.e., usa o AO na sua comunicação escrita.
Agora há uma curiosidade no argumento da simplificação. Passo a demonstrar:
De faktu a lingua purtugeza taim uma eskrita ainda muitu komplikada purk uza letras diferentes para reprezentar u mesmu som. Asim (aki poupamus um 's' sem perigu de ler akela palavra comu 'azim' comu se leria na antiga grafia)fikaria tudu mais simplifikado e só us idiotas que aprenderam a eskrever bem eh ke teriam alguma difikuldade. Naum kompriendu comu eh ke us akordistas naum levaram mais lonje a sua ideia de simplifikasau.
Como se vê, eu nem sequer estou agarrado à "antiga grafia" (referência com uma sonoridade depreciativa e muito pouco inclusiva) e sou capaz de escrever com as alterações introduzidas pelo AO90 e até mais. O problema não é mesmo nada esse, pelo menos para mim. A questão é predominantemente política, mas isso é para ambos os lados.
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