[No dia em que vão ser lidas as alegações finais no processo crime interposto pelos sobrinhos de Silva Pais contra Margarida Fonseca Santos, Carlos Fragateiro e José Manuel Castanheira.]
Assisti ao visionamento da peça "A Filha Rebelde", no âmbito do julgamento em curso. Já a tinha visto aquando da estreia. A autora, o encenador e o director do Teatro Nacional D. Maria II estão sob acusação de difamação do bom nome de Silva Pais, director da PIDE.
A objectividade em arte não existe, não se pretende através de uma peça de teatro absolver ou condenar seja quem for. A arte ultrapassa intenções. A verdade é que Annie podia ser qualquer jovem mulher saturada de uma vida cujo modelo lhe é transmitido por um marido enfadonho e autoritário, por um pai rigoroso, mas sentimental, uma mãe chata, rebarbativa, dominadora (soberbamente recriada por uma Lídia Franco no fio de navalha entre o dramático com aspas e o cómico - quando enxota um emissário do bilhete de avião é inexcedível).
Estes três elementos duma família podiam ter qualquer apelido, valeriam sempre enquanto personagens de teatro. O facto de haver sistemas políticos antagónicos (uma ditadura de direita e uma de esquerda) apenas exemplifica a "generation gap", ou pano de fundo ideológico, ou outro qualquer motivo de discórdia entre pais e filhos, neste caso nem é o essencial.
Há uma motivação pessoal em Annie.
Sente-se uma inútil como mulher de diplomata, como objecto de exposição acéfalo, flor decorativa de festas oficiais, sem direito a opinião própria, com estatuto obrigatório de esposa.
Quer trabalhar, ser útil, está sedenta por abraçar uma causa.
E deixa-se cativar pela revolução cubana e pelo seu ícone carismático Che Guevara. É óbvio que a paixão que se apodera de Annie sacrifica marido, pai, mãe e até pátria. Onde é que já ouvi, vi, li isto? É tema clássico.
Os nomes, as situações históricas, o próprio Salazar "perdoando" a Silva Pais os desvarios da filha, no contexto do drama maior da rebeldia de Annie, são o pano de fundo. Há na peça uma intemporalidade, uma existência aquém da realidade, uma transfiguração teatral que impede a apropriação duma interpretação unívoca, tautológica, processual.
Há uma infinidade de interpretações possíveis duma palavra, duma fala, duma cena, dum gesto ou ausência dele; tudo tem sentido na traumática apropriação da personagem pelo actor ou vice-versa. É o espectador quem verdadeiramente interpreta os significados múltiplos. Não existe a unilateralidade, a miopia da visão redutora, o magister dixit de um encartado que afirma: "alto! aqui na linha três, na viragem para a linha quatro, há delito!" Isso, só num regime de censura prévia.
A peça tem a sua vida própria, os seus momentos irrepetíveis, obedece a causalidades que não se esgotam no texto ou subtexto, no talento dos atores, na força telúrica do palco, no equilíbrio entre ficção e realidade, na possibilidade permanente de haver inversão de uma e outra. A arte é isso mesmo, liberdade criativa, de quem escreve, de quem representa, de quem é espectador.
Quando Silva Pais diz ao personagem Rosa Casaco: "abafem-me esse general" está a dizer o que lá está dito ou o que não está lá dito?
Quando Silva Pais, de roupão, doente, entabula diálogo com o passado, é um pai angustiado e patético ou a figura tenebrosa de polícia-mor de um regime opressivo? O pormenor do roupão, eis tudo.
Annie, de vestido vermelho, trágica, sem futuro, cancerosa, dança um adeus ao seu corpo triste. É a filha rebelde ou a mulher perante o seu destino?
O que não se compreende é que se gastem recursos pagos pelo contribuinte num processo judicial em que se acusa a autora de difamação da memória e bom nome de Silva Pais. Então acusem-me a mim e a todos os espectadores que não deixam à porta do teatro o espírito crítico, nem a bagagem histórica, nem a experiência pessoal. E das duas uma: ou já sabiam ou ficaram a saber. Ou então nada perceberam.
Iva Delgado
Link para o site da Fundação Humberto Delgado - http://www.humbertodelgado.pt/WebFHD/index.jsp
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1 comentário:
Um grito de alma, aguçado por um sentimento de revolta, de quem sentiu na pele a perda de um Pai às mãos de um regime sem nome!
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