quarta-feira, março 16, 2011

A crise, o euro e a importância da memória ...

In PÚBLICO, 16/03/2011

E se a ameaça ao euro fosse política?

Por Inês de Medeiros

Tão segura que está da sua superioridade democrática, a Europa hesita em assumir-se como um espaço de unidade

Foi notícia de abertura dos telejornais e capa dos jornais franceses: Marine Le Pen, a nova líder da extrema-direita francesa, surge em primeiro lugar nas intenções de voto para as presidenciais de 2012. 23% dos seus eleitores dizem-se próximos da extrema-esquerda e 36% sem filiação partidária. Faltam ainda dados sobre os abstencionistas que poderiam deixar de o ser... O sucesso crescente da extrema-direita que se quer nacionalista e sócia é, pois, inegável.

No contexto actual, seria um erro lidar com estas notícias como se de política interna francesa se tratasse.

A Europa sempre precisou do pacto franco-alemão para avançar e a senhora Le Pen é muito clara na sua visão da Europa: a Europa de Bruxelas é inimiga do Estado-nação, faz parte do "complô" da globalização - por isso promove a imigração clandestina - e constrói-se contra a vontade soberana dos povos. A solução para a crise, que também atinge a França, é, pois, simples: a saída imediata da zona euro.

Marine Le Pen não está sozinha. Um pouco por toda a Europa temos assistido apaticamente à subida ao poder de movimentos eurocépticos cada vez mais radicais. Suécia, Holanda, Itália, Hungria, Finlândia já têm que lidar com a extrema-direita no poder. E mesmo alguns sectores alemães já consideram a chanceler Angela Merkel demasiado liberal e europeísta.

Fala-se muito da pressão dos mercados sobre o euro, mas ecoa o silêncio quando se trata de avaliar a ameaça política. Aliás, o discurso político pura e simplesmente desapareceu. A estes movimentos mais extremistas basta, pois, colmatar esta falta. Populismo? Demagogia? Má política? Certamente. Mas eficaz e perigosa resposta à aridez e à desumanidade do discurso financeiro dominante.

E o que é o "nacionalismo social" (nacional socialismo?) que a senhora Le Pen defende?

Fidelizado que está o seu eleitorado mais racista e xenófobo, a senhora Le Pen pode dedicar-se ao eleitorado mais à esquerda. Assume-se como uma antiliberal convicta: contra os bancos, contra a especulação financeira, contra o clientelismo. Denuncia a distância entre as elites e o povo; defende os serviços e funcionários públicos, os grandes investimentos do Estado e promove o enxovalho indiscriminado da classe política. No actual contexto de crise, é óbvio que este discurso encontra terreno fértil. Mas em dimensões que até surpreendem os partidos e organizações historicamente mais contestatários.

Ninguém hesitou em comparar a actual crise com a crise de 1929, mas poucos querem relembrar as consequências da mesma: o exacerbar das rivalidades económicas entre os Estados, o crescimento exponencial dos nacionalismos mais ferozes. A atitude sobranceira de certos países do Norte da Europa em relação aos "malcomportados" do Sul, que condenam à recessão como acção punitiva, será mera coincidência ?

Conviria talvez lembrar que a esclerose de mecanismos de regulação política em muito contribuiu para os dois grandes conflitos mundiais do século XX. Que a criação de uma Comunidade Europeia permitiu a paz durante mais de 50 anos, substituindo a concorrência entre Estados pela cooperação e solidariedade entre povos.

Tão segura que está da sua superioridade democrática e, apesar da equiparação 1929-2007, a Europa hesita em assumir-se como um espaço de unidade, omite os princípios que estiveram na sua origem e age como se de uma mera junção ocasional de interesses dos Estados se tratasse. Ameaças aos regimes democráticos só do outro lado do Mediterrâneo!

No entanto, o discurso da senhora Le Pen tem o mérito da pouca ambiguidade. Defende um Estado forte mas que tenha, e passo a citar, "os instrumentos técnicos e legais que assegurem o seu poder". Vindo de quem vem, teme-se o pior. E, para que não haja dúvidas, fala da escola pública como instrumento essencial para a construção de um Homem Novo.

O Presidente da República, no seu polémico discurso, apelou a um sobressalto cívico. Apesar de não duvidar das profundas convicções democráticas do Prof. Cavaco Silva, conviria talvez esclarecer em que sentido, pois o que não falta actualmente por essa Europa fora são movimentos a fazerem o mesmo apelo, mas pelas piores razões e com as mais duvidosas das intenções. Actriz, deputada pelo PS

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