PÚBLICO, 22.09.2008, Maria José Araújo
As crianças também têm objectivos e expectativas em relação à escola que têm sido ignorados
Se a integração das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) na escola tem sido polémica, a proposta de incluir nesse espaço as consolas ou os videojogos é ainda mais. Não será somente por se tratar de equipamento electrónico ou pelo conteúdo dos jogos - que é muito mais rico do que muitos imaginam - mas porque o jogo e o brincar têm sido deixados para segundo plano (dentro e fora da escola). O discurso dos adultos neste campo é claro: a escola é uma coisa séria, brincar e jogar não. À força de tanto querermos organizar, controlar e pensar pelas crianças, evidenciamos ainda mais a diferença entre a escola contemporânea e a cultura infantil hoje ligada à lógica da audiência e da sedução. Precisamos de acreditar e respeitar as crianças no presente - hoje - e não só como o futuro do país ou quando queremos fazer boa figura contando as suas histórias.
A escola tem objectivos curriculares que se entendem e devem valorizar, mas as crianças também têm objectivos e expectativas em relação à escola que têm sido ignorados. Com todos os avanços e recuos, as discussões sobre a escola e a educação têm frequentemente esquecido os seus heróis principais. Paradoxalmente, as crianças tendem hoje a ser mais cultas e a perceber melhor o mundo em que vivem. Para os que têm a nostalgia do passado ou do presente, convém lembrar que nunca houve tanta gente a ler e escrever e nunca os pais estiveram tão presentes na educação dos seus filhos. Quanto aos videojogos - na Playstation ou noutra consola, são jogos electrónicos computadorizados directamente ligados às TIC, que se podem jogar manipulando imagens num ecrã (de computador, TV, telemóvel...) - o que estes oferecem é a possibilidade de as crianças viverem a aventura que o jogo propõe: descobrir, passar níveis, trocar peças, definir estratégias, partilhar, controlar e ter a ilusão de entrar na acção.
Penso que seria um benefício para os educadores se encarassem a possibilidade de os conhecer da mesma forma que têm de conhecer uma história, um programa ou qualquer outro jogo para com as crianças brincar. Mais do que negar por desconhecimento, é preciso perceber as razões do interesse das crianças e dos jovens pelos jogos (e também de quantos adultos...) e aceitar que eles não só são uma ocupação legítima como têm mesmo um potencial importante em termos educativos. A verdade é que muitos adultos são mais ignorantes que as crianças no que diz respeito às tecnologias - a literacia computacional faz falta a muitos educadores/as. E, em lugar da curiosidade e do respeito por este tipo de objectos interactivos, vem a negação e a resistência, incapaz de compreender por que é que eles suscitam tanto entusiasmo. Qualquer adulto sabe jogar ao pião e à macaca, e por isso acha que são jogos "bons". Só que um jogo de computador ou consola exige outras competências que muitas vezes os adultos não têm. Para os mais jovens, pelo contrário, a literacia computacional e o acesso às TIC são quase sempre precedidos de uma aprendizagem informal, em casa e através da cultura do jogo electrónico. O acesso massivo das crianças a este tipo de dispositivos é anterior ao seu acesso ao computador e teve sempre uma grande importância na indústria do entretenimento. Os jogos de vídeo/consolas constituem para os mais novos o primeiro contacto e treino no mundo das TIC.
Sempre que os professores conseguem perceber a importância educativa das coisas que as crianças gostam de fazer e que fazem parte da sua cultura, do brincar e jogar, criam condições para ultrapassar algumas das barreiras que os impedem de ter cumplicidades educativas com as crianças. A verdade é que todos os dias ouvimos dizer que as crianças não se interessam pela escola. Talvez uma possibilidade de elas se interessarem pelo espaço educativo é ter de tudo um pouco. E neste pouco, porque não os jogos de que eles tanto gostam? Que, em vez de integrar, contextualizar, partilhar, discutir e perceber, a escola queira negar esta componente da cultura digital e da cultura infantil e juvenil, só mostra a insensibilidade da escola em relação ao que a rodeia.
Por outro lado, se o problema é que os miúdos já brincam de mais, vale a pena questionar o senso comum: as crianças trabalham já hoje, no seu ofício de aluno, as mesmas horas que um trabalhador/a. Às aulas somam-se as actividades para casa e, frequentemente, actividades "extracurriculares" (também na Escola a Tempo Inteiro) que reproduzem a lógica da escola e as ocupam com "actividades úteis" em função do que os adultos entendem ser útil para as crianças na escola. O respeito pelo tempo livre das crianças devia ser para levar a sério. Se não reabilitarmos a possibilidade de brincar e de escolher o que fazer do tempo (ou de não fazer nada), poderemos destruir a própria infância. Investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
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