domingo, novembro 05, 2023

"Moderados de todo o mundo: uni-vos!" (Pedro Abrunhosa, PÚBLICO, 2/11/2023)

Moderados de todo o mundo: uni-vos!
Só uma solução política que envolva os moderados dos dois lados poderá fazer a transição da “injustiça-absoluta” para a paz desejada. Nem Netanyahu nem o Hamas são capazes desta solução.

Moderados de todo o mundo: uni-vos!
Nada há de heróico em matar um ser humano. Absolutamente nada. Nem em nome da pátria, nem em nome da história, nem, muito menos, em nome de Deus. A selvagem incursão do Hamas pelos kibutzs israelitas a 7 de Outubro é um ignominioso acto de covardia e barbárie. Numa palavra: terrorismo. Terroristas metralhando pelas costas civis inocentes, casais com crianças ao colo e idosos nas suas camas, nada conseguirão pela nobre causa palestiniana, a não ser fazê-la retroceder. Esta é a face visível de um dos extremos: o Hamas nunca representou o povo palestiniano. Bem pelo contrário, tornou-o refém de uma lógica de guerra na qual todo o habitante de Gaza é um seguro de vida, um escudo humano que o Hamas empurra para a linha da frente.

Moderados de todo o mundo: uni-vos!
Como já fez notar Yuval Noah Harari num dos muitos artigos que tem publicado sobre o conflito Israel-Hamas, não existe, entre Estados ou entre povos, a possibilidade de implementação de uma "justiça absoluta". Tal ideia é um impeditivo para a paz, porque toda a estratégia para um acordo de paz é um compromisso bilateral que envolve cedências nas clivagens históricas. Imperfeito mas efectivo. Por outro lado, "justiça absoluta" pressuporia a transposição para o presente do mútuo somatório de todas as malfeitorias cometidas pelas partes ao longo da história, cabendo a cada uma, simultaneamente, a exigência e a reposição das reparações que ambas reivindicam como justas. Tarefa impossível. No caso concreto, tal exigência significa recuar na história até ao ponto em que toda a zona do Médio Oriente era apenas terra inabitada, desértica. A paulatina, e ilegal, expulsão de palestinianos das suas terras por Israel, por exemplo, encontra paralelo na expulsão de judeus das suas casas na Síria, Egipto ou Iémen, como retaliação árabe pela ofensiva israelita de 1948. Nenhuma dinâmica criada por várias camadas de guerra permite uma reparação absoluta que satisfaça totalmente as partes. Na persecução de uma "justiça absoluta", a radicalização acaba por impor a "injustiça absoluta".

Moderados de todo o mundo: uni-vos!
O Hamas sabia que a reacção de Israel seria de fúria devastadora e que iria arrastar Israel para uma armadilha na qual civis palestinianos e judeus são apenas peões. E sabia-o porque Benjamin Netanyahu representa, por outro lado, o pior dos populismos autoritários e securitários. Aliado dos radicais ortodoxos e da direita ultraconservadora, sectores que se regozijaram com o assassínio de Yitzhak Rabin em 1995 às mãos de um extremista judeu, é fortemente contestado pelos sectores mais moderados e só à força de manipulação legislativa conseguiu manter-se no poder. A sua sobrevivência política, manchada por sucessivos casos de corrupção, assenta numa escandalosa concentração de poderes judiciais e executivos, tendo o Knesset feito aprovar uma lei que o protegeu de ser destituído na sequência do julgamento por três acusações de fraude, suborno e quebra de confiança. Netanyahu é um extremista para quem a paz nunca foi um caminho a desenvolver. A raiva indiscriminada com que Israel está a arrasar Gaza, cercando a população civil, privando-a dos mais básicos meios de sobrevivência, água, medicamentos e telecomunicações, fala por si.

O Hamas é mais do que uma organização terrorista que possa ser decapitada. É uma ideologia de ódio assente nas contínuas sevícias sofridas pelos palestinianos desde, pelo menos, 1948. Nenhuma ideologia se extermina à bomba ou à força da bala. Só o fim do regime de apartheid com que Israel oprime e humilha o povo palestiniano poderá subtrair força à ideologia de terror do Hamas. Afirmar que se pretende o "extermínio do Hamas" é pura propaganda. O vazio político deixado no território desde que o Hamas, com a bênção de Israel, expulsou de Gaza a Autoridade Palestiniana, somado à humilhação, pobreza e violência sistemática daquele povo às mãos dos soldados israelitas, tem empurrado milhares para as mãos destes extremistas fanáticos. Só uma solução política que envolva os moderados dos dois lados poderá fazer a transição da "injustiça absoluta" para a paz desejada. Nem Netanyahu nem o Hamas são capazes desta solução.

Com os brutais ataques israelitas sobre a população de Gaza, Netanyahu está apenas a engrossar as fileiras do ódio. Que alternativa restará a um adolescente palestiniano, até aqui alheio ao conflito, que testemunhe estas atrocidades, que perca casa, família, amigos, debaixo dos escombros ou mortos à sede e à fome, sem qualquer perspectiva de futuro, de trabalho e, sobretudo, de dignidade? O mesmo ódio que o Hamas provocou em Israel com a selvagem incursão a 7 de Outubro incendiará ódios intensos em todo o mundo árabe, aumentando as fileiras das inúmeras organizações de radicais fanáticos na região e fora dela.

Não pode o Estado de Israel envergar-se portador de uma moralidade de verdade assente na vitimização histórica quando exerce violência análoga sobre civis indefesos. A comunidade internacional não poderá deixar de exigir um rigoroso escrutínio sobre quem ordenou ataques que mataram, em apenas duas semanas, mais de 3000 crianças palestinianas. A barbárie não se combate com barbárie. A libertação imediata de todos os reféns israelitas nas mãos do Hamas e a cessação imediata dos ataques indiscriminados de Israel sobre Gaza devem concentrar os esforços de todos aqueles que lutam pela paz. O contrário poderá levar ao alastramento do conflito a outros países, arrastando outros interesses. Moderados de todo o mundo: uni-vos!

In PÚBLICO: https://www.publico.pt/2023/11/02/opiniao/opiniao/moderados-mundo-univos-2068734


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