É absolutamente indispensável que oiçamos testemunhos como este e que, por mais difícéis que sejam, nos façam refletir, para bem de todos nós, incluindo a Igreja. Muito obrigada, Isabel Moreira.
A moral sexual da igreja está no centro dos abusos - a religião pode ser abuso de menores
Isabel Moreira
Expresso - 20/02/2023
A colunista do Expresso recorda a sua própria experiência e as marcas que lhe ficaram: “É por isso que é tão traumático e tão doentio estar de joelhos, com 12 anos, no segredo do confessionário, a ouvir perguntas como da cintura para cima, o que já se passou? calma, calma e agora da cintura para baixo, vamos por partes. E que sorte que ninguém me tocou. Mas foi suficiente para passar anos com uma relação infernal com o meu corpo, com a culpa, com a figura masculina, com o prazer, com a alimentação”
A primeira vez que escrevi sobre o evidente clima de abuso que vivi no confessionário do meu colégio, foi no blogue “Jugular”.
Foi em 2009 e ali pode ler-se isto: “Lembro-me da provocação do C. Hitchens ao perguntar se a religião é abuso de menores. Às vezes é (…) “havia uma atenção doentia, por parte do colégio e do preceptorado, aos pecados da carne. De resto, os sacerdotes do opus dei ajudavam no terror. A primeira aproximação que tive às consequências do fenómeno do desenvolvimento (futuro) do meu corpo e da minha cabeça pecadora foi a explicação de que o dito corpo era o templo do espírito santo. (…) Isto foi terrivelmente explorado ao ponto de ser convocada uma reunião com a diretora do colégio no dia em que a mesma entendeu que nós, a minha turma, já teríamos sido visitadas por um acontecimento que inicia fatalmente a inclinação para o pecado da carne, de resto bastante provocado por uma espécie que nos era estranha: os rapazes. Esse acontecimento era a menstruação. Sim, ele foi-nos explicado em associação com o pecado. (..) Na confissão, (..) recebíamos uma folha com os dez mandamentos e, para cada um, sugestões de pecados. Assim, o nosso exame de consciência seria induzido e mais completo. No sexto mandamento, o fatídico da castidade, perguntava-se, por exemplo: demoro-me, no banho, a contemplar o meu corpo? Lembro-me de ser muito nova e de pensar demoradamente nesta pergunta. Lembro-me de tomar banho em dois minutos para não pecar. E lembro-me de pensar demoradamente noutras perguntas do mesmo calibre (…) O sacerdote fez-me perguntas de uma minúcia que nunca vi, como advogada, serem feitas em tribunal. O meu corpo, o corpo de uma criança, foi escrutinado atrás de uns quadradinhos de madeira, o confessionário”.
A Igreja tem uma obsessão com a sexualidade, uma obsessão negativa, e é nela que os abusadores laboram e é por isso que é tão traumático e tão doentio estar de joelhos, com 12 anos, no segredo do confessionário, a ouvir perguntas como da cintura para cima, o que já se passou?
Em 2009, houve muita gente que achou por bem atacar este relato, culpar-me, culpar os meus pais, fazer-me perguntas e muito pouca gente que percebesse o que ali ia dito. Houve muita gente preocupada com a reputação daquele colégio e da Igreja e não com o abuso.
Tem faltado, na análise ao relatório sobre os abusos sexuais cometidos por membros da Igreja de forma sistemática e devidamente encoberta, a perceção de que esses abusos têm uma especificidade que deveria calar quem nos dá a música “isto acontece em todo o lado”.
É que na Igreja, nos seus colégios e nos seus espaços, o sexo é absolutamente central. A moral sexual é um tema que nos molda (que nos tolda). É ali e só ali que nos “ensinam” que o saudável é afinal pecado e vergonhoso. É ali e só ali que, pessoas como eu, aprendem aos 9, 10, 11 e 12 anos que sexo fora do casamento é pecado, que sexo tem por finalidade primeira a procriação, que a masturbação é pecado mortal, que a masturbação é egoísmo e desrespeito pelo “templo do espírito santo”, que a homossexualidade é desvio.
A Igreja tem uma obsessão com a sexualidade, uma obsessão negativa, e é nela que os abusadores laboram e é por isso que é tão traumático e tão doentio estar de joelhos, com 12 anos, no segredo do confessionário, a ouvir perguntas como da cintura para cima, o que já se passou? calma, calma e agora da cintura para baixo, vamos por partes. E que sorte que ninguém me tocou. Mas foi suficiente para passar anos com uma relação infernal com o meu corpo, com a culpa, com a figura masculina, com o prazer, com a alimentação.
Por isso, em setembro de 2022, escrevi, no jornal “Expresso” o texto “Deus é homem e isso tem consequências”.
Há um trecho que diz isto: “Amar Jesus, um homem de verdade, um Deus/homem, é uma experiência prática. É em Cristo que, na verdade, se materializa o amor a Deus. Jesus veio à Terra e assim Deus ficou um pouco tangível (…). A Igreja repete a experiência de Jesus, de certa forma, através dos seus sacerdotes, que o representam, pelo que quando somos crianças e adolescentes e estamos mergulhadas no amor a Deus, em Cristo que o fez carne, sentimos que há nos sacerdotes qualquer coisa de divino. Eles, porque não há sacerdotisas, foram “tocados” pela “graça” do chamamento e não nos passa pela cabeça que um corpo que vista uma batina não seja virtude absoluta, acolhimento e, sobretudo, “lugar” de desabafo, confissão e perdão. Sem eles não há Céu. É assim mesmo. Sem sacerdotes, sem padres, não há como nos livrarmos dos pecados na confissão secreta e sigilosa que acaba na penitência e no perdão de Deus pela mão do sacerdote.
É por isso, ou também por isso, que explode em nós um grito de indignação perante intervenções como as do bispo do Porto, Manuel Linda, acerca do assunto. (…)
No confessionário, eu tinha 12 anos e fui inquirida pela voz do padre atrás dos quadradinhos de madeira acerca do tempo que eu demoraria a tomar banho e se olharia para esta e aquela parte do meu corpo. Durante algum tempo tive medo de tomar banho, tive medo do meu corpo, tive medo de Deus, não contei a ninguém e só não tive medo do padre. Era Deus (pai) na Terra”
Também neste dia houve quem achasse por bem dizer-me que Deus é homem e mulher, em vez de expressar alguma empatia pela gravidade destas palavras.
No dia seguinte, acordei muito ansiosa, como que de joelhos, outra vez, a pedir para não responder e a ouvir a vozinha que hoje sei ter sido pérfida, do outro lado dos quadradinhos, a dizer, calma, calma e da cintura para baixo?
Quando assisti aos relatos aquando da apresentação do relatório da comissão independente, ouvi o Dr. Daniel Sampaio alertar para o aumento da ansiedade de muita gente. No dia seguinte, acordei muito ansiosa, como que de joelhos, outra vez, a pedir para não responder e a ouvir a vozinha que hoje sei ter sido pérfida, do outro lado dos quadradinhos, a dizer, calma, calma e da cintura para baixo? Senti-me tão mal que não consegui trabalhar. Lembrei-me de anos de medo e de culpa e de uma sexualidade sã adiada.
Chorei pelo testemunho de abuso sexual por parte de um sacerdote que uma pessoa próxima me relatou, quando éramos novos, a chorar, fazendo-me jurar que o assunto ficava por ali.
Hoje sinto um alívio enorme ao ler a entrevista do Dr. Daniel Sampaio porque finalmente alguém se foca na moral sexual da Igreja como cerne da questão.
A igreja, tal como está, é um perigo. Tem os ingredientes mais perigosos para tirar a vida a crianças e jovens metaforicamente falando ou, algumas vezes, literalmente falando.
A religião é sim, tantas vezes, abuso de menores.
Tratem de ir mais além do pedido de desculpas e de pensar no que deve prescrever. É a moral sexual da Igreja que já caducou e que é um perigo real.
De caminho, parem de agradecer à Igreja por este relatório, para o qual foi empurrada, não tendo colaborado aqui e ali e sabendo de tudo porque tudo foi possível com o crime do encobrimento sistemático. O motor foi sempre o de proteger a reputação da Igreja e nunca o de proteger as vítimas.
Sem comentários:
Enviar um comentário