Rosa Monteiro, ex-secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade e uma das autoras da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania até aqui em vigor, considera que a retirada do currículo dos alunos de grande parte das matérias sobre sexualidade representa “um retrocesso inimaginável” e uma “cedência às forças conservadoras radicais”.
Entrevistada por Joana Pereira Bastos, jornalista.
A proposta do Governo para retirar da disciplina de Cidadania praticamente todas as matérias relacionadas com a sexualidade é uma “cedência às forças ultraconservadoras”, que estão a fazer uma “cruzada moral contra a escola”, critica a ex-secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, uma das autoras da Estratégia Nacional publicada em 2017 para esta área disciplinar e que o Executivo quer agora revogar.
“Claramente, o Governo tem um grande problema com a sexualidade e quer remeter o assunto novamente para o confessionário”, acusa a responsável, em entrevista ao Expresso, classificando a proposta do Ministério da Educação e da Ciência (MECI) como “um retrocesso inimaginável”.
De acordo com o documento do MECI que entrou esta segunda-feira em consulta pública, a sexualidade e a saúde sexual e reprodutiva são conceitos que desaparecem das novas Aprendizagens Essenciais da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Até aqui, estas matérias tinham obrigatoriamente de ser abordadas com os alunos em pelo menos dois ciclos do ensino básico.
Os conteúdos relacionados com a orientação sexual e a identidade de género, que geraram grande contestação nos últimos anos junto da direita mais conservadora, levando, inclusivamente, um pai a querer retirar os filhos da disciplina, serão agora excluídos do currículo. Para o ministro da Educação, a questão da identidade de género é "uma matéria de grande complexidade” e que “muitas vezes, as pessoas não estão sequer preparadas para lecionar”.
Segundo as orientações que estavam até aqui em vigor, a este nível a disciplina deveria ajudar os alunos a “compreender, respeitar e aceitar a diversidade na sexualidade e na orientação sexual”, ensinando que “a identidade de género é a experiência interna e individual de género profundamente sentida por cada pessoa que pode, ou não, corresponder às expectativas sociais” e que os jovens não devem ser limitados na forma como se expressam a este nível.
“As questões da identidade de género são muito sérias, estão consagradas na legislação e têm de ser devidamente tratadas. São questões que os alunos e as alunas todos os dias trazem para as salas de aula, querendo saber mais sobre o assunto”, defende Rosa Monteiro.
“Deseducação cívica”
Ao Expresso, a responsável salienta que “a área da educação é, em todo o mundo, o principal bode expiatório dos movimentos reacionários, conservadores, de direita radical e populista”, que estão a “fazer uma cruzada moral contra a escola”, porque esta é um baluarte da emancipação das pessoas.
“Estas forças não querem a formação de cidadãos esclarecidos que pensem pelas suas próprias cabeças e que não sigam toda a desinformação que veem nas redes sociais. Ao ceder a estes movimentos, o Governo está a promover a deseducação cívica”, lamenta a responsável.
Além dos conteúdos relacionados com a diversidade na sexualidade, também as matérias relacionadas com a saúde sexual e reprodutiva, como a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e a informação sobre métodos contracetivos, parecem desaparecer do programa.
Há duas semanas, na conferência de imprensa em que o ministro e o secretário de Estado apresentaram as linhas gerais do que se pretende mudar na disciplina de Cidadania, foi explicado que estas questões passariam a estar integradas no domínio da Saúde. Mas olhando para o documento em consulta pública, a verdade é que nesta dimensão nada é referido de forma explícita, em nenhum dos anos de escolaridade, nem sequer no que diz respeito a doenças sexualmente transmissíveis ou à contraceção.
“Simulacro de consulta pública”
Segunda-feira à tarde, confrontado pelos jornalistas sobre esta proposta, Fernando Alexandre afirmou que deduzir que esta matéria desaparecerá do currículo é “uma leitura apressada”. “Vamos deixar decorrer a consulta pública, em que vamos ouvir os pais, as famílias, as escolas, a sociedade, e voltaremos a falar", explicou o ministro.
Para Rosa Monteiro, o facto de “o ministro dar a entender uma coisa e fazer outra” não é por acaso, correspondendo antes a uma tentativa “intencional" do Executivo de "criar um alarido para esconder insuficiências gravíssimas do Governo”, nomeadamente em áreas como a Saúde e a Habitação. “Está a servir para tapar o sol com a peneira”, considera.
A ex-secretária de Estado para a Cidadania espera que ainda possa haver uma “reponderação” da parte do Ministério da Educação, mas entende que esta consulta pública, que decorre até 1 de agosto, “é uma vergonha” por ser feita em tão pouco tempo e numa altura em que “a comunidade educativa está a finalizar o ano letivo e em que as próprias famílias estão desfocadas” do tema. “Isto é um simulacro de consulta”, lamenta.
Consolidar orientações sem destruir
Ao Expresso, a socióloga refere que “as forças conservadoras radicais” tentaram, nos últimos anos, “criar um alarme social em torno do que estava a ser lecionado nas escolas ao nível desta disciplina”, sem terem sequer ouvido os estabelecimentos de ensino e os professores.
A responsável frisa que a Estratégia Nacional para a Educação para a Cidadania, que ajudou a definir, “foi um trabalho coordenado entre o Ministério da Educação e a tutela da Cidadania e da Igualdade” que envolveu a participação de múltiplas entidades, “o que é “um garante de uma visão mais ampla e sustentada” destas matérias.
Ainda assim, a ex-secretária de Estado reconhece que existiam “algumas dificuldades na implementação da disciplina”, nomeadamente pela ausência de orientações precisas sobre os conteúdos a abordar, em que anos e de que forma. “De facto a ausência dessa dimensão era problemática”, diz, admitindo que “era preciso consolidar orientações e fornecer mais estruturação dos conteúdos aos docentes e às escolas”.
Reforçar o tempo da disciplina era igualmente necessário, defende, já que “continuam a existir relatos de jovens que dizem que a disciplina de Cidadania era usada pelos professores sobretudo para falar sobre assuntos disciplinares.”
Apesar de defender a necessidade de alguns ajustes, Rosa Monteiro ressalva que “a consolidação de uma reforma exige tempo” e que, desde a aprovação da atual estratégia, as escolas passaram pela pandemia, “um período altamente disruptivo em que emergiram com nova intensidade problemas a que tiveram de dar resposta”.
“Isto carece do seu tempo e não podemos estar sempre a destruir tudo o que é criado para a educação”, conclui.
Por Joana Pereira Bastos, jornalista
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