30-05-2013 Público
Muitos se perguntam sobre o que se está a passar na sociedade
portuguesa para que personalidades, actores políticos e organizações
sociais estejam a pôr de lado as suas divergências para se juntarem em
acções de luta contra o actual Governo e as suas políticas da
austeridade. As razões são várias e os níveis de convergência são
diversos, o que significa que a força desta convergência talvez resida
em criar condições para redefinir as divergências democráticas num novo
ciclo político que se aproxima. Eis algumas das razões.
O novo antifascismo. A democracia portuguesa está suspensa porque as decisões políticas que afectam mais decisivamente os cidadãos não decorrem de escolhas destes nem respeitam a Constituição. Estalou um conflito fundamental entre os direitos de cidadania e as exigências dos "mercados" financeiros, e esse conflito está a ser decidido a favor dos "mercados". As decisões formalmente democráticas são substantivamente imposições do capital financeiro internacional para garantir a rentabilidade dos seus investimentos, tendo para isso ao seu serviço as instituições financeiras multilaterais, o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia, o euro e os Governos nacionais que se deixaram chantagear. Ao contrário do fascismo histórico, o actual fascismo financeiro, em vez de destruir a democracia, esvazia-a de qualquer força para lhe poder fazer frente e transforma-a numa monstruosidade política: um Governo de cidadãos que governa contra os cidadãos; o Governo legitimado pelos direitos dos cidadãos que se exerce violando e destruindo esses direitos. A defesa da democracia real exige uma união do tipo daquela que uniu as forças antifascistas que tanto lutaram pela democracia que tivemos até há pouco e que conquistámos há menos de 40 anos. Porque o fascismo é diferente, são também diferentes as formas de luta. Mas o que está em causa é o mesmo: construir uma democracia digna do nome.
Da alternância à alternativa. A crise financeira de 2008 significou o fim do que no pós-guerra se convencionou chamar "capitalismo democrático", uma convivência sempre tensa entre os interesses dos investidores em maximizar os seus lucros e os interesses dos trabalhadores em ter salários justos e trabalho com direitos. A convivência resultou de um pacto por via do qual os trabalhadores renunciaram às reivindicações mais radicais (o socialismo) em troca de concessões do capital (tributação e regulação) que tornaram possível o Estado social ou de bem-estar. Este pacto começou a entrar em crise logo nos anos setenta do século passado mas colapsou definitivamente com a crise de 2008, não só pelo modo como a crise ocorreu, mas pelo modo como foi "resolvida": a favor do capital financeiro que a tinha criado, o qual, em vez de punido e regulado, foi resgatado e libertado para repor rapidamente a sua rentabilidade e os bónus dos seus agentes. Os partidos políticos com vocação de governo distinguiram-se no pós-guerra pelo modo como geriram o pacto. Nisso consistiu a alternância. Desde 2008 tal pacto deixou de existir e por isso a alternância deixou de fazer sentido. Em Portugal, a assinatura do memorando da troika selou o fim do pacto e da alternância que fazia dele um pacto democrático. A partir de agora, em vez de alternância, é necessário buscar uma alternativa. As divergências no interior da coligação do Governo nada têm a ver com a alternativa e mostram que a alternância à alternância (com os mesmos partidos ou com algum deles e o PS) seria a reprodução, em forma de farsa, da tragédia que vivemos. A alternativa implica decidir entre a lógica do capitalismo financeiro e a lógica da política democrática. Neste momento, as duas lógicas são inconciliáveis. Os democratas portugueses convergem na ideia de que a democracia deve prevalecer e sabem que para que tal ocorra são necessários actos de desobediência às exigências dos "mercados", o que certamente vai envolver alguma turbulência social e política, cujos custos devem ser minimizados. Acima de tudo haverá que enfrentar a intimidação e a manipulação do medo, os drones com que os "mercados" destroem sem custos os direitos dos cidadãos. A desobediência pode assumir várias formas mas todas envolvem assumir que a dívida, tal como existe, é impagável; e injusta, porque não se pode liquidar um país para liquidar uma dívida. A opção pela democracia é a alternativa mas o modo de a levar à prática não é unívoco, tal como nada é unívoco em democracia. Ou seja, a alternativa contém em si alternativas. E aqui surgem as divergências que vão definir o novo ciclo político.
A Europa real e a Europa ideal.As divergências incidem em três temas: articular ou não a desobediência ao capital financeiro com a permanência no euro; centrar os esforços em renegociar a posição na UE ou em abrir a novos espaços e parceiros geopolíticos; dado que o fim desta UE é uma questão de tempo, lutar ou não por uma outra inequivocamente sujeita à lógica da democracia. Como é próprio de uma transição de paradigma, todas as posições envolvem riscos e nem sempre será fácil calculá-los. Mas mesmo nas divergências há alguma convergência: a actual UE está totalmente colonizada pela lógica dos "mercados"; o aprofundamento da integração em curso está a ser feito à custa das democracias da Europa do Sul; seria melhor que as posições de desobediência fossem tomadas por vários países articuladamente.
A luta política extra-institucional. Os partidos políticos de esquerda são os mais tímidos neste processo de convergência porque têm demasiados interesses investidos no actual ciclo político e temem pelo seu futuro. Têm dificuldade em admitir que, se não assumirem riscos, estão condenados a ser o verniz democrático das unhas do fascismo financeiro. O dilema que enfrentam é sério: se acompanharem o movimento social que aponta para um novo ciclo democrático, podem estar a cometer suicídio; se não o acompanharem, serão vistos como parte do problema que enfrentamos e não como parte da solução, correndo o risco de, no melhor dos casos, se tornarem irrelevantes, o que é outra forma de suicídio. Perante este dilema, que todos devemos compreender, os cidadãos e as cidadãs não têm outro remédio senão vir para a rua reclamar a queda do Governo e forçar os partidos de esquerda e centro-esquerda a assumir riscos, ajudando a minimizar os custos sociais e políticos da turbulência política que se aproxima sem olhar a cálculos partidários. Estamos talvez a entrar num momento forte de democracia participativa, servindo de fonte de revitalização da democracia representativa. Das instituições que sobrevivem à suspensão da democracia os democratas portugueses apenas têm alguma esperança no Tribunal Constitucional. Pelo respeito que lhes merece a instituição da Presidência da República, preferem nada dizer sobre o seu actual locatário.
O novo antifascismo. A democracia portuguesa está suspensa porque as decisões políticas que afectam mais decisivamente os cidadãos não decorrem de escolhas destes nem respeitam a Constituição. Estalou um conflito fundamental entre os direitos de cidadania e as exigências dos "mercados" financeiros, e esse conflito está a ser decidido a favor dos "mercados". As decisões formalmente democráticas são substantivamente imposições do capital financeiro internacional para garantir a rentabilidade dos seus investimentos, tendo para isso ao seu serviço as instituições financeiras multilaterais, o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia, o euro e os Governos nacionais que se deixaram chantagear. Ao contrário do fascismo histórico, o actual fascismo financeiro, em vez de destruir a democracia, esvazia-a de qualquer força para lhe poder fazer frente e transforma-a numa monstruosidade política: um Governo de cidadãos que governa contra os cidadãos; o Governo legitimado pelos direitos dos cidadãos que se exerce violando e destruindo esses direitos. A defesa da democracia real exige uma união do tipo daquela que uniu as forças antifascistas que tanto lutaram pela democracia que tivemos até há pouco e que conquistámos há menos de 40 anos. Porque o fascismo é diferente, são também diferentes as formas de luta. Mas o que está em causa é o mesmo: construir uma democracia digna do nome.
Da alternância à alternativa. A crise financeira de 2008 significou o fim do que no pós-guerra se convencionou chamar "capitalismo democrático", uma convivência sempre tensa entre os interesses dos investidores em maximizar os seus lucros e os interesses dos trabalhadores em ter salários justos e trabalho com direitos. A convivência resultou de um pacto por via do qual os trabalhadores renunciaram às reivindicações mais radicais (o socialismo) em troca de concessões do capital (tributação e regulação) que tornaram possível o Estado social ou de bem-estar. Este pacto começou a entrar em crise logo nos anos setenta do século passado mas colapsou definitivamente com a crise de 2008, não só pelo modo como a crise ocorreu, mas pelo modo como foi "resolvida": a favor do capital financeiro que a tinha criado, o qual, em vez de punido e regulado, foi resgatado e libertado para repor rapidamente a sua rentabilidade e os bónus dos seus agentes. Os partidos políticos com vocação de governo distinguiram-se no pós-guerra pelo modo como geriram o pacto. Nisso consistiu a alternância. Desde 2008 tal pacto deixou de existir e por isso a alternância deixou de fazer sentido. Em Portugal, a assinatura do memorando da troika selou o fim do pacto e da alternância que fazia dele um pacto democrático. A partir de agora, em vez de alternância, é necessário buscar uma alternativa. As divergências no interior da coligação do Governo nada têm a ver com a alternativa e mostram que a alternância à alternância (com os mesmos partidos ou com algum deles e o PS) seria a reprodução, em forma de farsa, da tragédia que vivemos. A alternativa implica decidir entre a lógica do capitalismo financeiro e a lógica da política democrática. Neste momento, as duas lógicas são inconciliáveis. Os democratas portugueses convergem na ideia de que a democracia deve prevalecer e sabem que para que tal ocorra são necessários actos de desobediência às exigências dos "mercados", o que certamente vai envolver alguma turbulência social e política, cujos custos devem ser minimizados. Acima de tudo haverá que enfrentar a intimidação e a manipulação do medo, os drones com que os "mercados" destroem sem custos os direitos dos cidadãos. A desobediência pode assumir várias formas mas todas envolvem assumir que a dívida, tal como existe, é impagável; e injusta, porque não se pode liquidar um país para liquidar uma dívida. A opção pela democracia é a alternativa mas o modo de a levar à prática não é unívoco, tal como nada é unívoco em democracia. Ou seja, a alternativa contém em si alternativas. E aqui surgem as divergências que vão definir o novo ciclo político.
A Europa real e a Europa ideal.As divergências incidem em três temas: articular ou não a desobediência ao capital financeiro com a permanência no euro; centrar os esforços em renegociar a posição na UE ou em abrir a novos espaços e parceiros geopolíticos; dado que o fim desta UE é uma questão de tempo, lutar ou não por uma outra inequivocamente sujeita à lógica da democracia. Como é próprio de uma transição de paradigma, todas as posições envolvem riscos e nem sempre será fácil calculá-los. Mas mesmo nas divergências há alguma convergência: a actual UE está totalmente colonizada pela lógica dos "mercados"; o aprofundamento da integração em curso está a ser feito à custa das democracias da Europa do Sul; seria melhor que as posições de desobediência fossem tomadas por vários países articuladamente.
A luta política extra-institucional. Os partidos políticos de esquerda são os mais tímidos neste processo de convergência porque têm demasiados interesses investidos no actual ciclo político e temem pelo seu futuro. Têm dificuldade em admitir que, se não assumirem riscos, estão condenados a ser o verniz democrático das unhas do fascismo financeiro. O dilema que enfrentam é sério: se acompanharem o movimento social que aponta para um novo ciclo democrático, podem estar a cometer suicídio; se não o acompanharem, serão vistos como parte do problema que enfrentamos e não como parte da solução, correndo o risco de, no melhor dos casos, se tornarem irrelevantes, o que é outra forma de suicídio. Perante este dilema, que todos devemos compreender, os cidadãos e as cidadãs não têm outro remédio senão vir para a rua reclamar a queda do Governo e forçar os partidos de esquerda e centro-esquerda a assumir riscos, ajudando a minimizar os custos sociais e políticos da turbulência política que se aproxima sem olhar a cálculos partidários. Estamos talvez a entrar num momento forte de democracia participativa, servindo de fonte de revitalização da democracia representativa. Das instituições que sobrevivem à suspensão da democracia os democratas portugueses apenas têm alguma esperança no Tribunal Constitucional. Pelo respeito que lhes merece a instituição da Presidência da República, preferem nada dizer sobre o seu actual locatário.
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