Muito obrigada por esta carta que me enviaram sobre o Acordo Ortográfico. Permitiu-me voltar a refletir, a fundamentar e manifestar a minha posição sobre esta polémica.
Sou a favor do Acordo Ortográfico celebrado entre os países lusófonos, que tem uma orientação eminentemente fonética. Fui sempre muito penalizada na escola primária por causa da ortografia, até à 4ª classe, depois disso deixei de dar erros, como que por "magia". Não foi por "magia", foi porque a minha professora da 4.ª classe (como então se dizia) se fartou de trabalhar connosco a ortografia e porque eu amadureci. Na nossa escola primária - atual 1.º Ciclo do Ensino Básico - e agora falo como professora deste nível de ensino, sobrevaloriza-se a ortografia. Há outros aspetos muito mais importantes a considerar na aprendizagem da escrita, como sejam a "textualidade" - a fluência da escrita - as ideias que se querem transmitir, a construção da argumentação (ou seja o encadeamento das ideias). Lembro aqui como o trabalho de alfabetização de Paulo Freire, no Brasil, foi associado à emancipação das populações, à sua capacidade de lutar por melhores condições de vida, à sua capacidade de se organizarem. A escrita tem um grande peso na nossa cultura e pode ser, sem dúvida alguma, um fator de emancipação, tal como pode ser também um fator de descriminação e exclusão social. A escrita trabalha-se ... é como tudo: é necessário escrever e reescrever e voltar a escrever e a reescrever. A ortografia trabalha-se também - mas há aspetos muito mais importantes a considerar, em meu entender, sobre este assunto e ainda mais no momento presente.
A minha identidade cultural, enquanto portuguesa, não fica em nada ameaçada pela mudança ortográfica. Não creio que o mesmo nos aconteça enquanto povo. Pobres os que sentem afetada a sua identidade cultural, o seu sentimento de pertença, por uma alteração na ortografia: as regras da grafia, da escrita.
Pessoalmente, enquanto portuguesa, gosto também de pertencer a uma comunidade mais alargada, a dos povos falantes de língua portuguesa - aí sim: reforço a minha identidade histórica e cultural, numa imensa diversidade de culturas locais, entre o hemisfério norte e o hemisfério sul, espalhada pelos cinco cantos do mundo - gosto desta identidade enriquecida e múltipla, aberta e sempre disposta a conhecer o "outro", o diferente, conhecimento esse facilitado por falarmos e escrevermos uma mesma língua - mas com tantos significados tão diversos e diferentes. Tudo isto no meio das imensas contradições da história entre colonizados e colonizadores, entre explorados e explorados, entre ricos e pobres.
A carta que me enviaram desconhece que o Acordo Ortográfico (AO) é um acordo internacional, com uma história, que foi ratificado pela Assembleia da Republica em 2008 - ou seja, tem força de lei (veja-se a polémica a este propósito entre Vital Moreira e Vasco Graça Moura*). A todos os cidadãos se reconhece o direito de desobediência civil que é o que esta cidadã faz nesta carta, assumindo as respetivas consequências), mas vivemos ou não vivemos num estado de direito? A posição de uma cidadã (como a da carta) é igual à de um presidente de uma instituição pública, como o Centro Cultural de Belém, que segundo a comunicação social, retirou de todos os computadores o corretor ortográfico e decretou que lá se continuaria a utilizar a antiga grafia?
A maior parte dos especialistas que agora se pronunciam contra o AO estiveram "distraídos" durante os longos anos - 20 anos, segundo o Henrique Monteiro - em que esteve em discussão pública, à boa maneira portuguesa, deixaram passar o tempo e calaram-se.
Interessante é reparar a origem social de quem é contra o AO. A ortografia (note-se que a antiga ortografia tem uma fundamentação etimológica, que acaba por se tornar muito mais elitista), tal como a matemática, têm sido na escola, pela forma como são encaradas, fatores de discriminação e de exclusão social, aquilo a que os educadores críticos e os investigadores deste domínio denominam por "gate-keepers" e, tanto quanto percebo pelo que está em causa no AO, tudo o que venha contribuir para desfazer esses "gate-keepers", para simplificar a ortografia, para a tornar mais próxima do que se fala (perspetiva fonética), sou a favor.
A posição que assumo parte da minha própria experiência, que acima referi, enquanto aluna, mas sobretudo enquanto professora e investigadora.
Dois link interessantes sobre o AO e que me ajudaram a aprofundar a minha argumentação.
*) Os links para esta polémica encontram-se no artigo da Wikipedia que refiro - um artigo muito bem feito e completo.
P.S. - Uma amiga fez-me chegar este artigo do Henrique Monteiro, Diretor do Expresso, sobre esta questão, que também acho valer a pena ler: http://expresso.sapo.pt/o-acordo-20-anos-depois=f706306#ixzz1rv1Ev5kB
Actualizado às 14h25.
Referências:
- Ricardo, M.M.(2009)Breve História do Acordo Ortográfico. Revista Lusófona de Educação, 13, pp. 173 - 180. Recolhido em http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/rle/n13/13a11.pdf, consultado a 12 de Abril de 2012
- Wikipedia (2012). Acordo Ortográfico de 1990. Recolhido em http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_Ortogr%C3%A1fico_de_1990, consultado a 12 de Abril de 2012
3 comentários:
É, de facto, uma pena esta tendência para resistir tanto à mudança, neste aspe(c)to como em muitos outros. O papel dos professores é fundamental nesta transição, imensa para os adultos acomodados nos seus hábitos e tão simples para as crianças.
Os argumentos do Henrique Monteiro são simples e fáceis de usar em sala de aula - importante divulgá-lo entre professores.
Maria João Freitas
(linguista e amiga da amiga que lhe enviou o texto do HM :-))
Respeito todas as opiniões, mas como eu não vou ser importante neste país, vou continuar a escrever como sei.
E como só me vai ler quem quiser, peço a esses que me vão aturando enquanto tiverem pachorra.
Beijinhos.
PS - E não gosto que o Vasco Graça Moura esteja do meu lado!!!
Mª João
Estamos de acordo.
Muito obrigada pelo artigo do Henrique Monteiro.
Não percebo por que razão as pessoas resistem tanto ...
Beijinhos.
MFC
Estás na situação de desobediência civil, estás no teu direito - também respeito.
Beijinhos e bom fim-de-semana.
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